![]() Outrem em mimA psicografia é uma técnica de escrita usada por alguns médiuns* para tentar convencer outras pessoas da existência de espíritos e da possibilidade de comunicação com os mortos, historicamente utilizada por Allan Kardec, na França, para elaborar sua teoria e fundar o espiritismo.
Após ver mesas levitando e girando sozinhas, Kardec jurou que os espíritos poderiam mover objetos e, até mesmo, sua própria mão. Assim, Kardec fez mais de mil perguntas para os espíritos e obteve todas as respostas, escrevendo-as por si mesmo.
No Brasil, a consagração da psicografia se deu com Chico Xavier, que ficou reconhecido popularmente por suas cartas de amor e compaixão, assinadas em nome de pessoas mortas. Chico recusou dinheiro e optou por uma vida bem humilde, mas alcançou o estrelato de comunicador do mundo espiritual às custas da propagação da doutrina espírita herarquizadora e pré-destinadora de Allan Kardec.
Waldo Vieira* (amigo pessoal de Chico, falecido em 2015 ), revelou como funcionavam os truques de escrita usados para obter as informações específicas sobre os mortos e convencer as pessoas com as cartas psicografadas endereçadas aos seus parentes, que Chico Xavier fraudava sessões de materialização e não garantia a autenticidade das materializações de Uberaba ocorridas em 1964. Com isso, a psicografia passou a ser mais questionada, tanto pela sua metodologia prática altamente artificial, quanto pela sua utilização tendenciosa e manipuladora.
Sobre Chico, o que Waldo Vieira revelou foi que Chico não atuava sozinho, e muitas informações específicas como nome do morto, data de falecimento, apelidos e outras informações mais pessoais eram repassadas para Chico através de terceiros. Waldo Vieira dizia que outras pessoas, que estavam ao lado dos “médiuns”, circulavam pelas salas de espera, coletavam algumas informações com as mães desesperadas e as transmitiam para o “médium” diretamente ao pé do ouvido, ou as registrava em cartas enviadas para o “médium”. E o que sabemos sobre Chico Xavier é que ele, além de ter sido um grande leitor, também era um excelente escritor, e por isso não seria de se estranhar que ele tivesse tanta habilidade em demonstrar o seu talento nas cartas psicografadas.
Waldo Vieira também relatou que, até mesmo, alguns parentes ou próprios amigos dessas mães “ajudavam” os médiuns na coleta de informações, auxiliando o repasse de informações com a intenção de “facilitar” que o espírito do morto pudesse se comunicar. Inclusive, algumas pessoas levavam a carteira de identidade da pessoa falecida, permitindo que a letra de sua assinatura fosse visualizada e copiada durante a elaboração da carta. E mesmo não conseguindo as mínimas informações, Chico também elaborava cartas generalistas, que só contavam com alguns termos e expressões padronizadas, servindo para que qualquer mãe eventualmente se identificasse diante seu desespero, como por exemplo: “minha querida mamãe”, “seu filho do coração”, “aos meus irmãos queridos”, “meu amado pai”. Da mesma forma, é curioso notar que a estratégia do convencimento também acontecia pelo reconhecimento da forma como se deu a morte da pessoa. Assim, as mães que procuravam respostas de filhos que cometeram suicídio eram padronizadas com o contexto do arrependimento e com mensagens de perdão. Já nas mortes que aconteciam por acidentes inesperados, as mensagens tranquilizavam as mães com a ideia de que o acidente já estava programado para acontecer, e de que o filho já estaria acolhido espiritualmente, confortando a mãe com frases de amor, que não foram ditas antes por ele enquanto vivo.
Também é interessante observar o fato de que algumas mães se convencerem, até mesmo, por apenas uma palavra ou apelido pessoal identificados na carta psicografada, e que somente ela acreditava que sabia. Ainda assim, há uma explicação para essas auto-identificações sentimentais: diante uma exposição grupal (por exemplo, como a sala de espera num centro espírita), e somado a eventos emocionais de perda ou trauma (a morte de um filho), alguns estudos em neurociência do comportamento humano demonstram que nossa memória é reeditada inconscientemente pelo nosso cérebro, e uma nova informação, mesmo sendo falsa, pode ser considerada real por mecanismos instintivos próprios, dependendo do nível emocional e social embutido naquele evento e naquela situação. Isso explica porque muitas mães se impressionavam tanto com alguns detalhes, mesmo quando eles não pareciam assim tão bem verdadeiros. Não é à toa Chico ter feito muito mais sucesso com as mães de filhos mortos, em comparação com outros familiares ansiosos por mensagens de um parente já falecido, tal a forte intensidade da identificação gerada pelo sentimento de perda de um filho com o conforto consolador de uma mensagem final.
James Randi, nos EUA, que ofereceu 1 milhão de dólares para que qualquer pessoa demonstrasse qualquer manifestação ou efeito sobrenatural, que não pudesse ser explicada cientificamente. Em todas as tentativas, James Randi desmascarou muitos “médiuns”, que se consideravam paranormais, e outros charlatões ao vivo num programa de televisão. Mas, o fato é que a grana oferecida por Randi não atraiu esses “médiuns” espíritas, já que sua prática espiritual não é movida pelo dinheiro, mas sim pelo ego. E, em se tratando de ego, nenhum deles estariam dispostos a “por em cheque” suas atividades espirituais, já que a maioria não saberia lidar com o vergonhoso fato de poderem ser desmascarados e invalidados quanto aos seus falsos poderes comunicativos.
E a explicação dos espíritas para esta técnica é tão surreal que são, no mínimo, três exigências (absurdos) que estamos aceitando sem questionar: primeiro, crer que espíritos existam; segundo, crer que o espírito possa se comunicar; e terceiro, crer que o médium possa entendê-las e transmiti-las. A teoria kardecista explica muito superficialmente como essas possíveis manifestações espirituais aconteceriam, usando conceitos fantasiosos e termos como “ectoplasma” e “materialização”, elaborados unicamente pela fé e impossíveis de serem testados a luz da razão. Por isso, não há formas de crer metodologicamente em uma doutrina que valoriza o artificialismo e comunga com o claramente irracional. O espiritismo de Kardec ultrapassa sua prepotência em querer explicar o mundo, e o que a religião espírita faz com a psicografia não é esclarecer com a verdade, mas sim oferecer um mecanismo para iludir as pessoas. E a ilusão é capaz de levar conforto para a dor da perda! Nesse sentido, é preciso que as pessoas reconheçam a atividade desses “médiuns” espirituais como uma conveniência comungada pela própria religião, e não como uma prática dotada de verdade absoluta.
O grande problema, e o mais grave, dessa técnica é que escrever algo em nome de alguém, sem a devida autorização, é uma atitude que está ligada ao abuso de identidade. Por mais carinhosas ou caridosas que sejam as palavras no conteúdo das cartas endereçadas, e por mais que a intenção seja confortar a dor dessas mães, há muita covardia em se escrever algo no nome de alguém que não pode corrigir ou contradizer as afirmações que são ditas em seu nome. Imaginem como deva ser extremamente desconfortante viver uma vida com suas próprias escolhas e legítimas decisões, e diante sua morte, alguém ter a ousadia de usar seu nome para dizer as coisas das quais você se arrependeu ou não, as pessoas que amou ou não, as crenças que você realmente acreditou ou não e, até mesmo, a religião que decidiu seguir ou não. E o que esta prática tão tendenciosa permite, é reeditar a história de quem já viveu e recriá-la a partir da ótica espírita.
Analisando friamente a atitude desses “médiuns”, não está muito longe dos crimes de falsidade ideológica. Nesses crimes, pessoas especializadas na capacidade de falsificação de documentos alteram o conteúdo dos mesmos para favorecimento de si próprio ou de terceiros. Comparando-se isto à psicografia, o favorecimento relativo ao primeiro caso seria se auto-consagrar com o poder sobrenatural; no segundo, valorizar a própria religião e atrair o público espírita. É claro que há uma grande diferença entre falsificadores de documentos (que agem de má-fé) e os “médiuns” psicográficos (que exploram a fé-cega), muito embora exista sim uma relação bem sutil entre eles.
Este é o perigoso e covarde poder da manipulação que a estratégia espírita da psicografia utilizada para atrair muitos fiéis. Ao contrário do que ocorreu em outros países, como Portugal e na França, a difusão do espiritismo, aqui no Brasil, com as cartas de Chico Xavier, deu muito certo graças à ignorância e ao baixo nível educacional da maioria do povo deste país, que sempre tornou as pessoas alvos fáceis para a doutrinação religiosa em massa.
Após a morte de Chico Xavier e a posterior revelação das técnicas e truques por Waldo Vieira, as cartas endereçadas foram deixadas relativamente de lado, e a psicografia passou a ser um método eficiente de escrita que os autores espíritas encontraram para divulgar o espiritismo com seus livros pessoais assinados em nome de espíritos. Assim, os novos “médiuns” divulgadores do espiritismo elaboram histórias fantasiosas de reencarnação e lições de moral com conceitos da doutrina kardecista e as publicam em formato de livro. Neste tipo de atuação, a psicografia se torna uma prática limitada à uma atividade pessoal, altamente introspectiva, pois é dotada do sentido literário, ou seja da criação imaginária como uma forma de expressão através da escrita.
Mas no geral, o que fazemos quando estamos compactuando com a psicografia das cartas endereçadas é, além de permitir que esses “médiuns” sustentem o falso-poder sobrenatural de comunicação com mortos e se auto intitulem promulgadores da profetização espiritual, também estamos permitindo que estes escritores se tornem capazes de abusar da identidade de alguém que não pode mais se defender.
Desmistificar a psicografia não significa enxergar a maldade na postura dos “médiuns”, pois muitos usam desse artificialismo pra promover o perdão e o amor, e não para o mal. Mas não é preciso abusar da identidade de uma pessoa morta para se promover a compaixão ou para confortar e convencer alguém sobre algo. É preciso que as pessoas reconheçam melhor o limite racional de atuação do ser humano, incluindo aí o respeito à identidade das pessoas que já morreram. Crer em vidas futuras e imortalidade da alma é uma coisa, agora abusar da identidade de pessoas mortas e sustentar falso-poder comunicativo para se tentar comprovar as crenças espirituais e convencer outras pessoas disso é uma atitude irracional, condizente com a exploração gratuita da fé. Não podemos endeusar falsos-ídolos pela mistificação de suas atitudes. Não vivemos no mundo dos “X-MENS” onde uns desenvolvem capacidades sobrenaturais superiores aos outros. É tempo de nos reconhecermos pela simplicidade da vida e da humildade do nosso campo de ação. Os misticismos do passado devem ser deixados de lado para que possamos evoluir como sociedade. As religiões que consagram o visivelmente irracional jamais evoluirão. E, como buscam a evolução, os espíritas só irão realmente evoluir quando abandonarem definitivamente a psicografia como método de comprovação da comunicação “espiritual”, e passarem a reconhecê-la apenas como uma obra de ficção, dotada de conteúdo literário, de valor simbólico e uso exclusivamente religioso.
O que fazemos quando estamos compactuando com a psicografia das cartas endereçadas é, além de permitir que esses médiuns* sustentem o falso-poder sobrenatural de comunicação com mortos e se auto intitulem promulgadores da profetização espiritual, também estamos permitindo que estes escritores se tornem capazes de abusar da identidade de alguém que não pode mais se defender. BRIENNE OF FKING TARTH - https://jornalggn.com.br/noticia/
* Waldo Vieira nasceu em Monte Carmelo, MG, em 1932 e foi um médico cirurgião plástico e cosmético, dentista, médium, lexicógrafo, autor brasileiro de várias obras, e o primeiro conscienciólogo devido a ser o propositor da Conscienciologia e da Projeciologia.
* Edelarzil Munhoz Cardoso realiza supostas materializações em uma casa, localizada em Votuporanga, SP, mais conhecida como “Médium do Algodão”, Edelarzil não foi pega em flagrante de fraude, porém as evidências indicam que sim (Padre Quevedo: Materializações no algodão? 1991). https://gospel-semeadores-da.forumeiros.com/t12160-fraudes-mediunicas-ampliada
*As Irmãs Fox foram três mulheres que, nos Estados Unidos tiveram um importante papel na gênese do espiritualismo. Katherine "Kate" Fox (1837–1892), Leah Fox (1814–1890) e Margaret "Maggie" Fox (1833–1893) fizeram sucesso por muitos anos como médiuns que diziam possibilitar espíritos a se manifestarem por batidas (tiptologia), porém em 1888, Margaret confessou que as batidas eram uma farsa, mostrando publicamente o método que usavam para enganar o público. https://pt.wikipedia.org/wiki/Irm%C3%A3s_Fox
* Filme "O Milagre", The Wonder é um longa-metragem irlandês coproduzido internacionalmente com Estados Unidos e Reino Unido de drama histórico psicológico lançado em 2022 baseado no romance homônimo lançado em 2016 de Emma Donoghue e dirigido por Sebastián Lelio: "Assombrada por seu passado, uma enfermeira, em 1862, resolve ir até um remoto vilarejo irlandês visando investigar o suspeito, mas supostamente milagroso jejum de uma jovem". https://pt.wikipedia.org/wiki/The_Wonder
Imagem: https://caridadefe.org.br/wp-content/uploads/2022/06/REVISTA-RIVAIL-ANO-III-R03.pdf
LucianaFranklin
Enviado por LucianaFranklin em 14/02/2023
Alterado em 24/04/2025 Copyright © 2023. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor. |