LucianaFranKlin

É a mim mesmo que pinto. Michel de Montaigne

Textos

O Enigma de Diego

     Diego Velázquez pintou a tela Las Meninas em 1656 e hoje ela está no Museu do Prado em Madrid. A composição enigmática e complexa da obra levanta questões sobre realidade e ilusão, criando uma relação incerta entre o observador e as figuras representadas, mostra um grande aposento no Real Alcázar de Madrid durante o reinado do rei Filipe IV da Espanha, com várias figuras da corte espanhola contemporânea representadas, de acordo com alguns analistas, em um momento específico como se fosse em uma fotografia. Algumas olham para fora do quadro em direção ao observador, enquanto outras interagem entre si.

 

     A jovem infanta Margarida Teresa está cercada por um séquito de damas de companhia, chaperone, guarda-costa, duas anãs e um cão. Pouco atrás deles está o próprio Velázquez, que se representa trabalhando em uma grande tela. O artista olha para longe, além do espaço pictórico onde o observador da pintura estaria. Ao fundo está um espelho que reflete o rei Filipe e a rainha Mariana. Eles parecem estar colocados fora do espaço da pintura em uma posição similar à do observador, apesar de alguns acadêmicos especularem que suas imagens são o reflexo da pintura em que Velázquez é mostrado trabalhando.


     Os pintores raramente gozavam de uma alta posição social na Espanha do século XVII. A pintura era considerada um ofício, não uma arte como poesia ou música.Mesmo assim, Diego Velázquez conseguiu subir pelas fileiras da corte do rei Filipe IV, sendo nomeado em fevereiro de 1651 como camareiro do palácio. O cargo lhe trouxe posição e recompensas materiais, porém seus deveres o deixavam com pouco tempo livre.

 

     O quadro está ambientado no estúdio de Velázquez, na Real Alcázar de Madri, uma fortaleza convertida em palácio real onde vivia o rei Felipe 4º (1621-1665) com sua família. A sala está repleta de personagens que não estão lá por acaso. A diferença desse quadro para os retratos tradicionais da realeza é que o quadro As Meninas se compara com uma cena de um filme, pela ação e o movimento que contém. Além disso, a incomum presença do próprio pintor no quadro, ao fundo, olhando na direção do espectador, aumenta ainda mais o enigma em torno dele.

 

     O que causa fascinação neste quadro de Velázquez é que ele realiza dentro da cena, um jogo entre realidade e ficção que se desenvolve quando ele suprime o que está pintando e o devolve como um reflexo no fundo do quadro, enquanto te distrai apresentando o restante da cena. Ele inverte a forma como costumamos olhar para um quadro. Normalmente, vemos a pintura sob o mesmo ângulo observado pelo pintor, fazendo um movimento de 'câmera' que nos põe no lugar de quem está sendo retratado. Estamos observando o que, teoricamente, quem estivesse sendo pintado veria. O que não se sabe com certeza é o que o pintor quis expressar com essa técnica original.


     As Meninas nem sempre teve esse nome. Velázquez deu ao quadro o nome de A Família de Felipe 4º. O nome atual da obra surgiu em 1843, quando os especialistas de arte da época chegaram ao consenso de que a pintura ia muito além de um simples retrato da família real. E o quadro As Meninas tem um elenco de personagens que incluem uma princesa, uma freira, uma anã, um bobo da corte e o próprio Velázquez.


     Infanta Margarita é um dos poucos elementos de luminosidade de toda a composição. No centro da cena está a infanta (princesa) Margarita Maria Teresa de Áustria. A princesa era quarta filha de Felipe 4º, mas a primeira que ele teve com sua segunda esposa, Mariana de Áustria. No quadro, ela parece ter cinco ou seis anos de idade. Ao lado dela estão as mulheres que acompanhavam e assistiam à jovem princesa em sua rotina diária. Atrás delas há uma monja, que parece estar discutindo com um guarda não identificado. No centro da parede ao fundo há uma porta aberta pela qual dá para ver um homem numa escada encarando o espectador. É José Nieto Velázquez, camareiro da rainha que também estava encarregado da oficina de tapeçaria. À direita da infanta está Mari Bárbola, uma das oficiais da corte real. Por fim, no talvez mais importante elemento de toda a composição, há um espelho à esquerda da porta, no qual vemos o reflexo de um casal: o rei Felipe 4º e a rainha Mariana. Os reis estão em pé (refletidos no espelho) no mesmo lugar em que os espectadores estão, enquanto Velázquez pinta seu retrato. Não sabemos o que está acontecendo ou o que reúne essa variedade de personagens no mesmo lugar. Não sabemos se Velázquez está fazendo um retrato da infanta ou dos reis que são refletidos. Nem sabemos se há algo pintado em sua tela.


     As teorias em torno do espelho e de seu reflexo fazem com que este seja um dos principais mistérios que persistem ao longo do tempo. Os especialistas não têm certeza se ele reflete mesmo o casal real ou se seria um outro casal pintado na tela em que Velázquez trabalha. Devido à maneira com que o artista brincou com a perspectiva da imagem, argumentos razoáveis ​​podem ser feitos para justificar as duas possibilidades.


     Rei Felipe 4º e rainha Mariana de Áustria aparecem refletidos no espelho ao fundo. Segundo a historiadora Andrea Imaginario: "Temos pinturas que acompanham toda a cena, temos uma obra de arte que ao mesmo tempo representa outras obras de arte, e não é a única vez que isso acontece, isso foi feito várias vezes ao longo da história da arte — mas esse quadro também inclui esse espelho, que se destaca. E o espectador está naquele lugar refletido no espelho, onde estão as pessoas retratadas, que para mim é o fenômeno mais interessante nesta cena, afirma ela. "Isso se tornou um clássico obrigatório. Não veríamos as coisas da mesma maneira sem essa imagem, obra extremamente original nesta perspectiva."


     Praticamente todos os historiadores e restauradores de arte datam a obra As Meninas em 1656. Dado que a infanta Margarita nasceu em 1651, isso se encaixaria perfeitamente com a idade em que ela aparece na pintura. No entanto, há um elemento que atrapalha essa hipótese. Na pintura, Velázquez veste um elegante terno preto com uma cruz vermelha de Santiago no peito. Este símbolo é indicativo do título de Cavaleiro, que o rei Felipe 4º concedeu a Velázquez somente em 1659. Cruz de Santiago alimenta discussões sobre a real data de produção da obra. Como é possível, então, que a cruz figure ali três anos antes de ele ser incluído na Ordem de Santiago? Alguns acadêmicos insinuam que a cruz vermelha foi adicionada à tabela mais tarde por instruções do rei. Outros especialistas que examinaram a pintura garantem não haver duas camadas diferentes de tinta. Portanto, a cruz fazia parte da imagem original — levando a novas teorias. Embora a maioria dos acadêmicos continue datando a pintura em 1656, outra corrente de historiadores coloca a criação da obra alguns anos depois, em 1659. Outra possibilidade, que surge em estudos mais recentes, é que toda a cena é um produto da imaginação e fantasia do pintor, de modo que o fato de aparecer com a cruz de Santiago poderia muito bem ser a expressão de um desejo.


     As Meninas ficou guardado no Palácio Real até 1819, data em que foi transferido ao Museu do Prado. Alguns poucos privilegiados que o viram antes da transferência comentaram a novidade na qual um pintor se retratava ao lado da realeza. "A imagem parece mais um retrato de Velázquez do que da imperatriz", disse o escritor português Felix da Costa ao ver As Meninas em 1696.


     Velázquez quis ficar marcado na história com seu quadro, e conseguiu. Se você olhar de perto, ele parece ser o grande protagonista da peça. Seu papel preponderante na imagem é inquestionável. Para alguns estudiosos, isso mostra uma antiga reivindicação dos artistas do século 16, que queriam que seu ofício fosse mais valorizado. Até então, eram vistos como meros artesãos, considerados inferiores a escritores ou músicos.

 

     Para Andrea Imaginario, "o que vemos em As Meninas de Velázquez não é exatamente o retrato de algo, é a elaboração de um conceito extremamente complexo, um conceito literário. Esse conceito perturba o que deveria ser, ou o que as pessoas deveriam entender naquele momento como a função de uma pintura, que era registrar a história ou valores e ideias. Ele não apenas faz isso. Coloca outras coisas. Nesse sentido, poderíamos ver o significado total como uma afirmação da importância da pintura dentro de um universo que ainda não lhe dava o mesmo valor que daria literatura e música."

 

     Diego Velázquez queria permanecer na história com esta obra-prima. E, vendo as teorias e debates que gera, não há dúvida de que conseguiu.

 

Foucault, Michel, 1926-1984. As palavras e as coisas : uma arqueologia das ciências humanas / Michel. Foucault ; tradução Salma Tannus Muchail. — 8ª ed. — São Paulo: Martins Fontes, 1981.

 

https://www.bbc.com/portuguese/geral-50472322

 

https://laboratorioart.blogspot.com/2012/04/las-meninas-velazquez-e-foucault.html

LucianaFranKlin
Enviado por LucianaFranKlin em 26/12/2023
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