LucianaFranKlin

É a mim mesmo que pinto. Michel de Montaigne

Textos


É o que chamamos de Deus

     Demolir o edifício filosófico-político erguido sobre o fundamento da transcendência de Deus, da Natureza e da Razão, voltando-se também contra o voluntarismo finalista que sustenta o imaginário da contingência nas ações divinas, naturais e humanas.

 

     A imagem de Deus, como intelecto e vontade livre, e a do homem, como animal racional e dotado de livre-arbítrio, agindo segundo fins, são imagens nascidas do desconhecimento das verdadeiras causas e ações de todas as coisas. Essas noções formam um sistema de crenças e de preconceitos gerado pelo medo e pela esperança, sentimentos que dão origem à superstição, alimentando-a com a religião e conservando-a com a teologia, de um lado, e o moralismo normativo dos filósofos, de outro.

 

     A tradição teológica e metafísica ergueu-se sobre uma imagem de Deus, forjando a divindade como pessoa transcendente (isso é, separada do mundo), dotada de vontade onipotente e entendimento onisciente. Criadora de todas as coisas a partir do nada (confundindo Deus e a ação dos artífices e artesãos), legisladora e monarca do universo, que pode – à maneira de um príncipe que governa segundo seu arbítrio e capricho – suspender as leis naturais por atos extraordinários de sua vontade (os milagres). Essa imagem faz de Deus um super-homem, que cria e governa todos os seres de acordo com os desígnios ocultos de Sua vontade, a qual opera segundo fins inalcançáveis por nosso entendimento.

 

     Incompreensível, Deus se apresenta com qualidades humanas: bom, justo, misericordioso, colérico, amoroso, vingador, que pune ou recompensa o homem, conforme este transgrida ou obedeça aos decretos divinos, pois é dotado de livre-arbítrio ou de livre vontade para escolher entre o bem e o mal.

 

     Identificando liberdade e escolha voluntária e imaginando os objetos da escolha como contingentes (isto é, como podendo ser ou não ser, serem estes ou outros, serem como são ou serem de outra maneira), a tradição teológico-metafísica afirma que o mundo existe simplesmente porque Deus assim o quis ou porque Sua vontade assim decidiu e escolheu, e poderia não existir ou ser diferente do que é, se Deus assim houvesse escolhido.

 

     Se o mundo é contingente, porque fruto de uma escolha contingente de Deus, então as leis da Natureza e as verdades (como as da matemática) são, em si mesmas, contingentes, só se tornando necessárias por um decreto de Deus que as conserva imutáveis.

 

     A necessidade (isso é, o que só pode ser exatamente tal como é, sendo impossível que seja diferente do que é) identifica-se com o ato divino de decretar leis, ou seja, a necessidade nada mais é senão a autoridade de Deus.

 

     Compreende-se, então, porque tradicionalmente liberdade e necessidade foram consideradas opostas e contrárias, pois a primeira é imaginada como escolha contingente de alternativas também contingentes e a segunda, como decreto de uma autoridade absoluta. Donde o mito do pecado original, quando o primeiro homem teria usado a liberdade (entendida como o poder de escolha) para desobedecer aos mandamentos ou leis de Deus. Com esse mito, ergue-se a imagem da liberdade humana como um poder para escolher o mal, porta aberta para nossa perdição. A um Deus autoritário corresponde um homem decaído e desobediente, por culpa da liberdade.

     

     Como foi possível tanta ignorância e superstição para transformar o que temos de mais precioso – a liberdade – em culpa, perversidade e perigo?

 

    No conceito de substância, isso é, de um ser que existe em si e por si mesmo, que pode ser concebido em si e por si mesmo e sem o qual nada existe nem pode ser concebido. Toda substância é substância por ser causa de si mesma (causa de sua essência, de sua existência e da inteligibilidade de ambas) e, ao causar-se a si mesma, causa a existência e a essência de todos os seres do universo. A substância é, pois, o absoluto ou uma realidade absolutamente complexa, constituída de infinitas qualidades infinitas, cada uma das quais é uma potência produtora ou agente que engendra por si mesma e de si mesma as múltiplas ordens de realidade que formam o universo. A substância é a potência causal ou produtiva absolutamente infinita de auto-produção e de produção de todas as coisas.

 

É o que chamamos de Deus.

 

 

LucianaFranKlin
Enviado por LucianaFranKlin em 12/01/2024
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