A dicotomia entre ciências exatas e humanas
As ciências humanas são um acontecimento recente na história do pensamento ocidental. Antes, o homem não existia: Sua possibilidade somente aparece na virada para o século XIX. O homem, como objeto de saber, somente emerge com o fim da Idade da Representação, e não isoladamente. Trata-se de um objeto sui generis, dado que sua existência configura uma reduplicação de outros saberes: as ciências empíricas, a filosofia crítica e as matemáticas. Além disso, seu modo de ser é, extemporaneamente, representação. Os saberes estranhamente chamados ciências humanas encontram-se estreitamente relacionados com as ciências da vida e o nascimento das instituições disciplinares modernas, fortemente investidos do poder normalizador.
A dicotomia entre ciências exatas e humanas esvazia o debate sobre a construção do saber científico e ofusca a necessidade de integrá-las.
Para Descartes, por exemplo, eram exatos procedimentos que permitiam construir curvas por meio de equações algébricas. Ao invés de fazer um círculo geometricamente, usando o compasso, tornou-se possível construir essa figura por meio da equação . Essa noção de “exatidão”, como mostra o historiador da matemática Henk Bos em Redefining Geometrical Exactness: Descartes’ Transformation of the Early Modern Concept of Construction (NY, Springer, 2001), era típica do século 17. Surgiu no contexto de matemáticos-filósofos tentando ampliar os métodos de construção de curvas geométricas, que também serviam à ótica.
Mais tarde, em meados do século 19, a ciência viu-se às voltas com a ideia de objetividade. Observar o mundo e enxergar relações implícitas, não observáveis à primeira vista, era tarefa dos “homens de ciência” – a expressão é da época, pois a tarefa era mesmo considerada atribuição dos homens mais do que das mulheres. Como cientistas são humanos, tendem a projetar valores e afetos em suas observações, o que pode comprometer as conclusões. Para que isso não acontecesse, quem praticava a ciência precisava segurar a onda. Tinha que limitar suas tendências mais íntimas – sua subjetividade – e treinar o corpo e o olhar para garantir a objetividade de suas observações. A objetividade tornou-se, assim, uma virtude científica.
Seria possível dar inúmeros outros exemplos, mas a moral da história é que predicados como exatidão e objetividade, atribuídos hoje a certos ramos do conhecimento, foram inventados para ampliar os procedimentos aceitos ou para limitar traços humanos que pudessem prejudicar a observação científica. Hoje, as ciências ditas exatas são aquelas que usam a matemática. O modelo melhor acabado é o da física. Esses saberes foram construídos como exatos, em contextos específicos, para lidar com as possibilidades e os limites humanos para conhecer.
Separar as ciências entre exatas e humanas esvazia todo esse debate. Não podemos nos esconder atrás de pretensas verdades absolutas, e também não precisamos cair no relativismo banal de que todos os enunciados se equivalem. Verdades existem, só que elas mudam com o tempo. E está aí algo realmente maior do que o humano: o tempo.
"O que é a verdade portanto? Um batalhão móvel de metáforas e metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas, e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas". NIETZSCHE, Friedrich. Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral. São Paulo: Hedra, 2007.
FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.