A confissão no chuveiro que cura

"Numa obra consagrada ao tratamento moral da loucura e publicada em 1840, Luria, um psiquiatra francês, fala da maneira por que tratou um dos seus pacientes, o tratou e, como se pode adivinhar, o curou. Uma manhã, leva o seu paciente para um balneário. Fá-lo relatar em detalhes o seu delírio. 'Bem, tudo isso', diz o médico, 'não passa de loucura. Prometa-me que nunca mais volta a creditar nisso'. O paciente hesita, depois promete. 'Isso não chega', replica o médico. 'Já fez promessas semelhantes e não as cumpriu'. E liga o chuveiro frio por cima da cabeça do paciente. 'Pois sim, sim, sou louco', grita o paciente. O chuveiro é desligado. O interrogatório prossegue. 'Sim, reconheço que sou louco', repete o paciente, 'mas', acrescenta, 'é porque me está a forçar a fazê-lo'. É claro, nova chuveirada. 'Bem', diz o paciente, 'asseguro-lhe, contudo, que ouvi vozes e vi inimigos à minha volta'. Outro banho de chuveiro. 'Pois bem', diz o paciente, 'admito-o. Tudo isso é loucura. Sou louco'. E é claro, fica curado."*

*História da Loucura na Idade Clássica é um livro de Paul-Michel Foucault, originalmente publicado como Folie et Déraison pela editora Plon, em 1961, depois como Histoire de la folie à l'âge classique, em 1972, pela editora Gallimard. Foi traduzido para o português por José Teixieira Coelho Neto, em 1978. A editora Perspectiva detém os direitos autorais para a língua portuguesa. A obra apresenta um estudo, sob a perspectiva da arqueologia histórica; das ideias, práticas, instituições, arte e literatura concernentes ao tema da loucura na história ocidental. Esta foi a primeira grande obra de Foucault, escrita enquanto ele era diretor da Maison de France na Suécia. Ela resultou de sua tese de doutoramento na Sorbonne.

FOUCAULT, Paul-Michel, História da Loucura na Idade Clássica. Tradução de José Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva, 1978, pg. 203 e 204.